UMA IGREJA RELEVANTE NA COMUNIDADE


UMA IGREJA RELEVANTE NA COMUNIDADE


Mauricio J. S. Cunha



“Então, lhes perguntou Jesus: Que é isso que vos preocupa e de que ides tratando à medida que caminhais? E eles pararam entristecidos. Um porém, chamado Cleopas, respondeu, dizendo: És o único, porventura, que, tendo estado em Jerusalém, ignoras as ocorrências destes últimos dias? Ele lhes perguntou: Quais? E explicaram: O que aconteceu a Jesus, o Nazareno, que era varão profeta, poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo”

Lucas 24: 17-19


Introdução: uma reflexão crítica acerca da relevância da Igreja nas comunidades

O texto dos discípulos no caminho de Emaús nos ajuda a compreender a percepção que eles tiveram da vida e ministério de Jesus. Neste encontro, o Senhor já havia cumprido o seu ministério na terra, já havia ressuscitado e preparava-se para manifestar-se aos discípulos. Podemos entender a descrição que Cleopas fez do Mestre como uma espécie de “resumo” da visão que tinha acerca dele, do legado por ele deixado.

E como foi que os discípulos definiram Jesus? Quais os aspectos da sua vida e ministério, depois de tudo dito e feito, ficaram evidentes?
Jesus foi definido como “varão profeta, poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo”.

Como deve ser reconhecida a Igreja, Corpo de Cristo na terra? Da mesma forma que Jesus, a Igreja, tanto na sua dimensão universal quanto nas suas mais diversas manifestações locais, deve também ser reconhecida como poderosa em obras e em palavras, diante de Deus e de todo o povo. Isso traz implicações ministeriais de serviço tanto na esfera das disciplinas espirituais e de uma forte devoção (“diante de Deus”), quanto no serviço comunitário e testemunho através da proclamação, sinais, atos de justiça e obras (“e de todo o povo”). Nosso chamado é servir aos homens, em nome de Deus.

Por diversas razões históricas que culminaram numa leitura específica e equivocada das Escrituras e numa missiologia reducionista, a Igreja tem se restringido, muitas vezes, a ser “poderosa em palavras”. Valorizamos o púlpito, o evangelismo, a proclamação, e defendemos a verdade absoluta que expressamos verbalmente, mas nem tanto o serviço comunitário, o militância social, a ministração às necessidades físicas. Descremos num engajamento social e político e desconfiamos de qualquer forma de aliança ou parceria com outros atores sociais com vistas à transformação. Na vida pessoal, separamos o serviço “sagrado”, eclesiástico, espiritual, da atuação na vida profissional e comunitária, chamando-a de “secular”.
Nesta visão, que limita a missão à proclamação apenas, o nosso alvo final é a salvação de almas rumo a uma eternidade com Deus e a evidência de êxito é uma igreja cheia de gente. Uma prática missiológica estreita é um dos fatores que contribuem para uma igreja cada vez mais irrelevante:
- não há serviço comunitário;
- a igreja se torna um grupo de pessoas voltado para si;
- as manifestações de compromisso público e posicionamentos institucionais são apenas no sentido de defender os seus próprios interesses e não envolvem a sociedade como um todo, muito menos a denúncia das injustiças;
- os ministérios são desenhados para manter as estruturas da igreja e fazer com que elas funcionem bem, com pouca repercussão comunitária;
- a expressão vocacional dos membros é consumida internamente nos ministérios eclesiásticos. Quase não há espaço para uma militância social e um engajamento transformacional ao nível de sociedade. Quando muito, são iniciativas individuais dos membros, pulverizadas e com pouco impacto efetivo;
- posicionamentos e ações de cunho social são considerados “menos importantes” ou secundários, muitas vezes tolerados e não empoderados pelas lideranças, e quando existem, estão desconectados do sentido da própria Missão da igreja, o cerne e o sentido a sua existência.
- o testemunho social e as obras de serviço comunitário são vistos como um “gancho” para o que “realmente interessa”: o evangelismo e a salvação das almas. O resultado desta incompreensão acerca da integralidade da mensagem evangélica gera uma série de conseqüências, como: projetos com resultados fracos, equívocos na condução e avaliação dos programas de intervenção, manipulação da comunidade, falta de prioridade estratégica e orçamentária, etc.

Uma pergunta que cabe a todos nós, especialmente aos líderes eclesiásticos é: se sua igreja, num piscar de olhos, desaparecesse da comunidade onde está inserida, o que a comunidade ao redor ia achar disso?
Infelizmente, a resposta sincera a esta pergunta denunciaria a quase completa irrelevância de grande parte das comunidades cristãs, quando não um testemunho comunitário negativo.
Será esta a nossa vocação? Devemos nos contentar com esta situação?

Uma igreja relevante é assim reconhecida pela comunidade onde está inserida.

Uma igreja profética, em palavras e obras

Além da questão da não-dualidade do ministério de Jesus (o poder das palavras e das obras), o texto de Lucas nos traz a reflexão acerca da natureza do “profético”. Ainda que reconheçamos em Jesus a plenitude da manifestação dos dons ministeriais (apóstolo, profeta, evangelista, pastor e mestre), o fato é que, aqui, ele é reconhecido como “varão profeta”.

O que caracteriza o profético? Muitas respostas poderiam ser dadas a esta pergunta, mas gosto de pensar o profético como a proclamação do desígnio de Deus, a sua plena Vontade. Profetizar é anunciar a antecipação da chegada do Reino, o pleno Governo do Pai.

Temos a tendência de pensar o profetizar apenas como um ato de proferir palavras. Mas é interessante constatar que Jesus foi reconhecido como profeta de obras e palavras. Assim como a palavra profética é aquela que anuncia o desígnio de Deus, a ação profética é aquela que, por meio de uma intervenção prática, faz cumprir a sua vontade. E Jesus fez isso inúmeras vezes. O seu agir revelava a vontade de Deus, antecipando a chegada da plenitude do Reino. Ao alimentar os famintos, Jesus sinalizava o Reino onde há provisão para todos; ao curar os enfermos, mostrava que no Reino há saúde plena; ao tocar o leproso e falar com a mulher adúltera, corajosamente descortinava um Reino de equidade, justiça e solidariedade; ao denunciar a corrupção das autoridades religiosas, apontava para um Reino de verdade e justiça.

Podemos derivar o conceito de “ação profética” como a ação intencional da Igreja em anunciar e fazer cumprir, de forma prática, o desígnio de Deus para o homem e a sua criação. A meu ver, toda ação de intervenção social cristã deve ser profética, ou seja, deve refletir aquilo que Deus quer e o seu caráter. O conceito de ação profética é muito importante para definirmos o papel de uma igreja relevante na comunidade. Esta é uma igreja que entende e discerne as intenções plenas de Deus para um determinado contexto, e trabalha para vê-las cumpridas. É uma igreja ativa, atenta, serva, prática, contextualizada, corajosa, encarnada e que busca e excelência.

Uma igreja relevante, portanto, discerne o seu contexto e sinaliza o reino de Deus na comunidade. Cabe a cada comunidade de fé, a cada liderança que esteja seriamente comprometida com a sinalização do Reino, perguntar:
- em meu contexto, e em minha geração, quais são as questões que precisam ser enfrentadas e denunciadas e que ferem a santidade de Deus?
- o que significa ser “sal e luz” nesse contexto?
- quais são as questões que quebrantam, o coração de Deus? Quais as injustiças sociais e estruturais que contrariam sua vontade?
- quais são as principais necessidades do povo a quem fomos chamados a servir?
- quais valores comunitários e culturais precisam ser afirmados? Quais contrariam a cosmovisão cristã e precisamos atuar para transformar? Ou seja, o que precisa e o que não precisa ser transformado?
- quais seriam possíveis programas e projetos da igreja que, “indo muito além do politicamente correto”, manifestariam uma intervenção a partir de uma cosmovisão cristã em determinadas esferas da vida social?

Ser uma igreja relevante na comunidade implica em ter respostas específicas para estas perguntas, e, a partir delas, focalizar naquilo que é mais impactante, ou seja, que está relacionado às questões cruciais vividas em cada geração, em cada contexto. Isso não é uma tarefa fácil e requer um esforço intencional, um diálogo crítico com a cultura, uma constante reflexão crítica da nossa prática e acima de tudo uma decisão, baseada numa leitura missiológica das Escrituras centrada no Reino de Deus, com toda a sua abrangência.

Nesse esforço, é necessário muita oração e discernimento. Somos chamados, não a fazer “as coisas do jeito certo”, mas a “fazer a coisa certa”. Nesta caminhada, é fundamental utilizar-se de ferramentas que podem auxiliar cada igreja no exercício do seu serviço à comunidade: modelos de diagnóstico comunitário, desenhos de projetos, ferramentas de monitoramento e avaliação, definição de indicadores, etc. Mas nada disso substitui a essência da Missão: o amor de Deus manifestado de forma prática e incondicional. Amamos simplesmente porque Deus nos amou primeiro, e não para que as pessoas aceitem a nossa mensagem e se convertam.

A vocação histórica da Igreja na ação social transformadora

Ao analisarmos o papel da igreja cristã na obra de transformação social, percebemos que o que estamos propondo não é nada novo. Pelo contrário, sempre refletiu historicamente a vocação da igreja, em todas as fases da sua trajetória. Em cada geração, de acordo com o momento sócio-histórico, a igreja sempre procurou intervir de forma prática e influenciou na mais variadas esferas sociais, mostrando que nosso trabalho não é apenas “povoar o céu”, mas “discipular as nações da terra”.

Podemos citar, na história da Igreja universal, inúmeros exemplos disso. Desde a “corrida às pragas” empreitada pelos cristãos primitivos para acolher aos enfermos e doentes, até a influência estrutural da Reforma Protestante na transformação das estruturas políticas da Europa, influenciando as formas de exercício do poder em um contexto de monarquias absolutistas. Da mesma forma, podemos citar o caso de vários movimentos e avivamentos ocorridos na história da igreja, todos eles deixando um legado não apenas de “almas salvas”, mas de transformação social. Aqui podemos lembrar dar a abolição da escravatura na Inglaterra, a noção de educação para todos (a partir de um conceito de sacerdócio universal dos crentes) a fundação de várias universidades, uma nova ética do trabalho, a criação das escolas bíblicas dominicais (como resposta a uma preocupação social com as crianças pobres), e os incontáveis ministérios de socorro, alívio, assistência e desenvolvimento levantados por Deus, sem os quais a história da Humanidade teria sido muito diferente.

No caso do Brasil, vivemos um “movimento silencioso”, através das muitas congregações de fé espalhadas por quase todas as comunidades do país. Acredito que toda a igreja que prega e ensina a palavra de Deus já está sendo relevante e influenciando socialmente. Porém, esta influência está muito aquém do seu potencial, especialmente no nível estrutural. Carecemos de uma visão muito mais abrangente das intenções de Deus para o homem e a criação e de uma práxis missiológica a partir da noção de Reino de Deus.

Devemos nos perguntar: será que o contexto brasileiro não clama por um tipo de intervenção missiológica, que vá muito além das quatro paredes da igreja? Será que as questões cruciais na nossa geração, tais como violência, pobreza, miséria, desigualdade social, etc., não provocam uma resposta mais intencional da igreja? Será que o modelo missionário reducionista de “salvação de almas” está dando conta da vida real e dos anseios do nosso tempo? Será que a busca da sinalização do Reino não requererá de nós um engajamento social mais efetivo e intencional?

Todo este tipo de questionamento gera diversas implicações práticas que precisarão ser respondidas, tais como:

- constitui uma boa mordomia dos recursos de Deus manter o templo da igreja fechado quase toda a semana e só abri-lo para atividades religiosas da congregação, não disponibilizando-o para a comunidade?
- o mesmo acontece com outros recursos dos quais a igreja dispõe?
- quanto do orçamento da igreja é usado na implementação ou apoio a projetos de serviço comunitário, especialmente voltados aos mais necessitados?
- participamos de algum movimento ou rede de advocacy, promoção de direitos, denúncia de injustiças, etc.?
- se pensamos num impacto comunitário efetivo, que tipo de governança precisamos ter?
- estamos dispostos a valorizar os demais atores sociais da nossa comunidade e andar com eles em respeito e lealdade, sem abrir mão das nossas convicções, numa construção coletiva para a transformação da comunidade?
- os ministérios eclesiásticos, ou seja, internos à igreja, e a participação nas atividades “religiosas” tomam todo o esforço e tempo dos membros, não deixando nada para o engajamento social?
- as atividades de militância sócio-política são consideradas “mundanas”?
- apenas os ministérios “internos” são reconhecidos como tal e recebem apoio?
- a única forma legítima de servir a Deus é no serviço eclesiástico, cabendo à intervenção comunitária e à satisfação das necessidades físicas das pessoas um papel apenas secundário?

Uma igreja relevante: empoderadora de vocações para a transformação social

Entendo uma igreja relevante como uma grande empoderadora de vocações para a obra de transformação integral. Se pensamos em reforma social, especialmente em uma sociedade complexa como a nossa, precisamos compreender as diversas esferas da vida social, ou as diferentes “áreas de influência”: economia, direito, política, arte, ciência, família, educação, etc. Não há uma só destas áreas de expressão comunitária sobre a qual Cristo não deva governar e o seu Reino não deva ser estabelecido. Cada esfera, como sendo criada e estabelecida por Deus, tem princípios da cosmovisão cristã que podem ser aplicados. Esta é a ação redentora de Deus e da sua Noiva: a aplicação da Verdade em todas as áreas da vida.

Não há uma área que seja “neutra”, ou para a qual a Verdade revelada de Deus não tenha nada a dizer. Compreender isso é fundamental para encontrar a nossa própria vocação e andar nela, e para que possamos ser cooperadores de Deus na obra de redenção de todas as coisas.

À luz disso, concluímos que, se queremos ser relevantes, precisamos de, por exemplo, educadores que reflitam a cosmovisão cristã na área da educação: seus princípios eternos aplicados na formação dos seres humanos. Da mesma forma, políticos, artistas, cientistas, pais e mães, etc., devem pensar o que significa a aplicação da visão cristã de mundo nas suas respectivas áreas de vocação.

A igreja é um celeiro e uma grande depositária de vocações, talentos, recursos e potenciais, e nesse sentido, o papel da liderança deve ser o de orientar os membros para o serviço à sociedade, refletindo o nosso chamado como sal e luz. Há ainda muito a avançarmos nesta consciência e na formação de uma estrutura mínima que nos fortaleça e apóie as lideranças. Nesta difícil tarefa, acredito que será necessária a formação de pastorais específicas, para diferentes esferas de influência. Além disso, diferentes grupos, ministérios, denominações e igrejas precisarão associar-se em redes e alianças, do contrário não conseguirão adquirir uma relevância em seu contexto. Dada a complexidade da realidade social de hoje, os líderes deverão, cada vez mais, recorrer a ministérios-referência em diversas áreas, sendo orientadores da formação dos seus liderados. Líderes seguros, maduros e sinceramente preocupados com e relevância das congregações que lideram e com a sinalização do Reino atuarão como facilitadores para o desenvolvimento de vocações. Ministérios de excelência na área de família, artes, educação, formação política, organização comunitária, meio-ambiente, gênero, etnia, saúde, prevenção à violência, recuperação, apoio emocional e aconselhamento, etc., deverão continuar se estabelecendo como estruturas de sodalício a fim de apoiarem as igrejas locais em sua Missão.


Conclusão

A Igreja é o único organismo capaz de ministrar às necessidades integrais do homem.

Essa afirmação é de suma importância e crucial para entendermos a real dimensão da nossa responsabilidade. O chamado ao serviço comunitário, ao exercício intencional da influência sobre as diferentes esferas da vida social está no âmago da mensagem cristã. Como eclesia, ou seja, “uma assembléia de santos voltados para fora”, precisamos recuperar a nossa vocação histórica de agentes de transformação e esperança. Nosso destino é sermos relevantes.

Neste caso, uma relevância interna não é suficiente. Espelhando-nos em Jesus, devemos procurar o testemunho externo ao grupo, grande legitimador da nossa mensagem profética de redenção. Partindo de uma forte vida devocional que emerge dos templos e dos quartos secretos com portas fechadas nas nossas casas, o testemunho social da igreja deve invadir as feiras e praças da cidade, o ambiente de trabalho, a escola, a empresa, a universidade. A fé cristã não cabe entre quatro paredes.

Neste agir transformador, e igreja vai revelando a peculiaridade da sua intervenção, que vai muito além dos modismos, das estatísticas ou do que é politicamente correto. É a manifestação contextualizada da Verdade refletindo quem Deus é: no serviço, na proclamação, na compaixão, na coragem, no amor.

Da mesma forma, nenhum outro movimento pode ter a capilaridade da igreja: estamos em quase todas as comunidades do país! Este potencial de alavancagem para a transformação social não pode ser desperdiçado. É na comunidade que a fé acontece e assume os seus contornos. É na comunidade que se acendem as candeias.

Isso é o que ansiamos: cada igreja, cada cristão como um agente de transformação da sua própria comunidade.

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